a sombra escrita da imagem
70. A DÁDIVA DOS DESPERDÍCIOS
{Altair Martins]
Escritor e professor
[foto de Leonardo Sessegolo]
Meus amigos
poucas vezes
olharam pra cima
antes de dormir com alguém.
Só puderam sentir
o odor da carne
quando tudo amanhecia.
Sem que os corpos despertassem
e aturdidos pelo que chamaram
de o cheiro bom de outra pessoa,
meus amigos regressaram
à água escura
onde toda matéria
lentamente
se afoga.
Estiveram dormindo
enquanto (lá fora)
os prédios conversavam
sobre as coisas mais importantes:
respirar em fevereiro,
o gosto da manga
e a falta de carinho
que eles os minerais tanto sentem.
Meus amigos
não guardaram aquele instante
único
depois que se remontaram
depois de outra pessoa.
Deixaram um toque,
um olhar, um bilhete,
e foram para a escola
ou para o trabalho
pensando ou rindo
dos próprios nomes.
Meus amigos não olharam para cima
como encaro este edifício em frente.
Não se imaginaram
como os vejo agora:
tão empurrados pelo sol
e obedientes à fome
e ao oxigênio.
[Altair Martins]
Confira o áudio do autor: https://drive.google.com/file/d/1FHZhVXcvBDn58bC65SijRJvTiRGjsBpQ/view?usp=sharing