a sombra escrita da imagem
136. OUTRA VEZ SONHEI QUE A MINHA FILHA PEDIA CALMA
{Altair Martins] Escritor e professor

[foto Valmir Michelon]
Escuta: às 10:20, já não estou mais aqui.
Num carro que lentamente submerge
em água muito escura de um rio-ou-lago,
participo do velório das árvores.
As sucatas suspiram em ladainha
enquanto um indecifrável manto negro
oferece em feira frutos podres.
Ouço música, e a música é ruim.
Só amanhecem as ferrugens da ponte.
Em algum lugar
(talvez no estômago deste rio-ou-lago),
a minha filha pede calma.
Escuta: às 10:30 o que foi carro emerge.
Agora é uma balsa de destroços
à mercê de pescadores e pescados.
Sinto nas mãos a dor de sempre,
mas ninguém fala: estão todos comendo
conchas mortas e seres de plástico
que caminham, voam, nadam.
Sobre a ponte, os caminhões
não transportam mais remédios.
Perto (em alguma das margens
deste rio-ou-lago),
a minha filha pede calma.
Escuta: mas a água é rasa às 10:40.
O rio-ou-lago se veste de pedra-ou-asfalto.
Já tem nome. Já pertence a um país.
Sei que vou ficar sozinho e sem comida
quando amanhecer (às 11 em ponto).
Por enquanto, insetos me fustigam
nos intervalos de vento seco. Não decido
se é o chão que chora a sua palha morta
ou se os dias agora imitam procissões.
No sem-fundo do meu olho
(provavelmente seja isso o rio-ou-lago),
a minha filha pede calma.
Confira o áudio do autor: https://drive.google.com/file/d/1kN2d3KLwZPe0DqiUBc7TCRN95HHPaCrE/view?usp=share_link