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Jus Postulandi

1989. Uma máquina de escrever e uma caixa de papel contínuo (os mais jovens não conhecem) e, para não ter o trabalho de trocar de folha, escrevia rapidamente observando apenas o picote entre uma folha e outra: ali, cabia um ou mais espaços entrelinhas, geralmente regulado na máquina com o espaçamento “3” para evitar perder o texto no picote. 14 anos de idade, uma angústia acelerada no peito diante das mudanças prometidas para a educação e a decisão firme de manter meus estudos no Colégio Júlio de Castilhos, apesar dos esforços paternos em sentido oposto.
Antes disso, na área com lajotinhas vermelhas da casa de madeira, no bairro Teresópolis, em Porto Alegre, eu ouvia pelo rádio os debates e o clima quente da Assembleia Nacional Constituinte. Muito criança para perceber a dimensão do que estava acontecendo, muito ingênua para compreender como o poder circulava entre os interesses de grupos sociais organizados, os eventuais conflitos de interesses desses com os interesses políticos e, a necessidade extrema de um pacto social que pudesse servir de base para uma nova perspectiva política de Estado e social.
Nos dois cenários que mantenho com carinho na memória, uma alma com sede de pertença, buscando por espaço e conhecimento. Afinal, as verdades podem ser testadas, nenhum método exclui a possibilidade de verificação de hipóteses.
Muitos anos mais tarde, após algum tempo dividida entre a sobrevivência, as desilusões pessoais e o foco nos estudos, já formada, encontrei dois dos artigos que mais me “emocionam” em todo o ordenamento jurídico: Art. 5º e Art. 133 da Constituição Federal de 1988: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (e seguem todos os incisos importantíssimos, cuja leitura é obrigatória a qualquer cidadão e, o art. 133: “O advogado é indispensável à administração da justiça”).
E não é pela extenuante carga teórica necessária à formação, mas pela proximidade com os dilemas sociais e o acesso técnico adequado ao espaço delimitado pelo Direito; a compreensão sobre o significado de cada palavra contida no art. 5º e o compromisso contido no art. 133, que abro espaço – diga-se de passagem: extremamente feliz – para compartilhar em pequenas doses semanais, informações jurídicas por aqui: como quem anda pela sala de aula esperando aquela pergunta inquietante de alguém que não tenha feito sufocar aquela alma menina que um dia ouviu debates calorosos sobre temas constitucionais ou, uma outra alma qualquer que não tenha abandonado o hábito de anotar seus questionamentos – lógico que, não necessariamente, em um formulário contínuo – e queira, por questões que só o universo explica, ter o ânimo de me acompanhar.
Assim, dando-me a conhecer rapidamente, já adentro uma questão jurídica desta semana.
O Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT/SP) não reformou a sentença em um processo trabalhista, que considerou a confissão pelo não comparecimento em audiência, de um trabalhador que alegou não poder participar da audiência por não apresentar o “certificado de vacinação” ou teste antígeno não reagente para Covid-19.
Em primeiro lugar, é necessário contextualizar que o STF (que já se manifestou sobre o conflito dos direitos individuais e coletivos neste caso) tem ato normativo interno que restringe o acesso a quem não apresentar o certificado de vacinação e o Tribunal Superior do Trabalho ratifica essas normas, mais que isso, de forma democrática, oferece aos não vacinados a oportunidade de apresentação dois testes que comprovem resultado negativo para Covid-19.
Seria a confissão aplicada na sentença um obstáculo ao acesso à justiça a quem não realizou a vacinação?
Segundo o Regional não houve provas de que o homem e seu advogado tenham comparecido na audiência, e, igualmente não foi justificada a ausência como a CLT prevê, de tal forma que foi aplicada a confissão e mantida pelo Regional. (Processo número 1000242-29.2017.5.02.0433).
O debate acerca do conflito entre direitos fundamentais individuais e direitos fundamentais sociais, merece ser trazido à tona face aos objetivos constitucionais propostos nos primeiros artigos da Constituição Federal. Se, de um lado, a Constituição Federal representa o argumento sob o qual a sociedade se apoia para pleitear (justificadamente) seus direitos, se torna contraditório virar as costas para os pilares constitucionais que sustentam o próprio direito de pleitear para justificar condutas individuais.
Digo com mais clareza: há uma contradição no discurso que defende o direito individual sobrepondo-se ao direito social coletivo, pois isso contradiz os objetivos e fundamentos eleitos na Constituição como aqueles sobre os quais o Estado Democrático de Direito se ergue.
Tomando por base a coerência que se espera de uma sociedade que defende o Estado Democrático de Direito, justo é que se concorde com a prevalência dos direitos coletivos quando estes entrem em conflito com interesses individuais: mas, em algum momento, há renúncia de um frente ao outro? Não! É necessário apenas dar a conhecer as razões pelas quais um deverá se sobrepor ao outro: porque integra um dos objetivos da nação melhorar a vida de todos enquanto método constitucional de harmonização dos anseios sociais (inciso IV do art. 3º).
Sim. A tarefa de fundamentar o discurso não é fácil quando se tem um cenário plural (desejo constitucionalmente manifesto). Entretanto, faz parte do crescimento, aprendizagem e exercício de cidadania.
De outro lado, e, buscando ferramentas filosóficas para jogar luz ao cenário desenhado, é possível rever sob a lente de uma democracia que se sustenta sobre os desacordos, que é disso que a sociedade precisa: desacordos! Falar de desacordos, meus amigos e amigas, não é falar fazer defesa de extremos ou argumentos ideológicos, porém - com o uso do trocadilho, permito-me ideologicamente – sustentar argumentos coerentes e constitucionalmente vinculados.
Logo, ao manter os fundamentos da sentença que reconheceu a ausência como confissão, o TRT2 não manifestou negativa de acesso à justiça, nem mesmo mitigação dos direitos individuais, pois a decisão representa, à luz dos ditames constitucionais, a prevalência do art. 3º conjugado com o art. 5º, que denota que não deve haver distinção entre grupos sociais ou indivíduos, pois o objetivo do Estado Democrático de Direito, expresso no art. 3º já referido, é o bem comum de todos, assegurados os direitos sociais elencados no bojo do pacto constitucional.
E essa é a razão pela qual – e agora aquela garotinha sentada na área da casa de Teresópolis começa a ver sentido - o art. 133 da Constituição Federal se torna tão relevante e na minha leitura – emocionante: se estamos em uma sociedade plural e devemos reconhecer que a democracia se faz a partir dos nossos próprios desacordos, é o advogado que transitará neste espaço técnico jurídico capaz de aproximar do próprio judiciário as angústias sociais que, de alguma forma, não podem ser analisadas sem que se observem as peculiaridades e individualidades que claramente se manifestam no dia a dia do profissional.
Dito isso, e, apresentação pessoal à parte, teremos espaço a partir desta semana para refletirmos sobre temas jurídicos em ebulição, sempre ressalvados os pensamentos plurais e dinâmicos que enriquecem nosso convívio social e democrático.

*Patricia Santos Martins

Advogada, especialista e Direito do Trabalho e Processo do Trabalho, Mestre e Doutora em Direito pela UNISINOS/São Leopoldo.

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