a sombra escrita da imagem
27. DOIS CÃES FORAM VOTAR POR MIM

Dois cães pretos:
chegaram cedo,
portando documentos e gentilezas.
Em frente à nonagésima zona eleitoral,
esperaram em fila e desejaram um ao outro sorte.
Logo, seguiram lado a lado pelos corredores
da antiga escola onde estudei.
Pessoas que me conheciam
cumprimentaram os dois cães
como eles fossem professores de Literatura.
E eles dois falaram da saúde da minha mãe,
da idade dos meus filhos
e mais alguma coisa sobre o ano difícil e as recomendações da OMS.
Evitaram falar de futebol e da nova cédula de 200 reais,
mas prometeram visita a um amigo que há muito não viam.
Aos que lhes incutiram candidatos à prefeitura
(às secretas porque proibido),
eles balançaram as orelhas
e mantiveram o meu segredo.
Não rosnaram.
Não latiram.
E ainda assim houve quem risse dos dois
como se risse de mim.
E calmamente,
após passarem pela biblioteca onde aprendi a ler,
foram ao voto e votaram.
Depois, como ainda fosse um domingo,
pode ser que tenham ido a um bar
na beira da praia
onde se toma uma cerveja
e não se pensa em mais nada.
E quando anoiteceu,
e quando abri a porta
aos dois cães que foram votar por mim,
os fogos de alguma vitória lhes entraram dolorosos pelos ouvidos.
Só aí eu tive a certeza
de que os dois cães votaram, sim,
pela água da torneira,
pela ração incondicional aos que têm e aos que não têm dentes,
e por todos os gatos e gatas que tão agudo miam quando a noite é fria
— em especial por aqueles que ninguém encontra
mesmo quando os dias são claros demais.