Há três anos ,tive o privilégio de fazer uma entrevista exclusiva e inusitada. Aproveitei o momento em que lembrava-se os 176 anos do término da Revolução Farroupilha, através do tratado de Paz de Ponche Verde, para entrevistar uma das testemunhas da história da Revolução Farroupilha, o Cipreste Histórico, uma árvore declarada imune ao corte. Naquela semana de fevereiro de 2021, no meio da pandemia, sentei num dos bancos da praça Gomes Jardim, e a árvore símbolo da cidade recebeu este jornalista sem agendamento prévio, com atenção e todo respeito. Alguma mas pessoas que passavam pelo local, acharam estranho, eu conversando com com o Cipreste. Mas tudo bem. Mantive o distanciamento. Não pude abraçá-la, portanto, em virtude da pandemia que já tinha matado na cidade mais de 120 pessoas. O Cipreste respondeu-me com a sabedoria de quem tem já viveu cerca de três séculos e pode viver até dois mil anos.
Em 2024, no dia 19 de maio, fotografando a enchente, vejo algo boiando no Guaíba, parecia um boneco de pano, entro na água e logo percebo em se tratar de São Francisco de Assis, o protetor da natureza e dos animais. Conheci mais a história do santo desde que ingressei no Seminário dos Freis Capuchinhos, quando tinha 11 anos e lá vivi por mais de 10 anos estudando para ser padre e muito estudei sobre ele. Por coincidência o Dia do Cipreste, foi criando lembrando o dia de São Francisco de Assis.
Reproduzo aqui os principais pontos da nossa conversa em 2021.
VALMIR - Como você nasceu e passou seus primeiros anos de vida?
CIPRESTE - Não tenho muitas lembranças desse período. Mas conta uma lenda que por aqui passavam soldados espanhóis. Um comandante faleceu e foi sepultado no terreno onde acampavam. Para marcar o local, plantaram uma muda da árvore (no caso, eu) para representar vida longa. Foi assim que eu nasci no alto deste morro, com uma vista privilegiada, me tornando testemunha de muitos acontecimentos no entorno.
VALMIR - Você já teve filhos?
CIPRESTE - Pois é. Certa vez o médico Gaston Leão presenteou umas mudas feitas a partir das minhas sementes: umas foram para a prefeitura de Porto Alegre e outras, para São Paulo. Nunca mais tive notícias delas. Sei que você, como jornalista de Guaíba chegou a ir atrás dessas árvores, mas não teve respostas. Espero que, como eu, possam ainda estar vivas e proporcionando sombra e alegrias para as pessoas.
VALMIR - Quais foram os momentos mais marcantes que você testemunhou?
CIPRESTE - Diversos, os discursos nesta praça pela emancipação de Guaíba, a gripe espanhola no começo do século passado. Mas , com certeza, o fato mais importante ocorreu em 1835. Lembro bem a movimentação no meu entorno e na casa de Gomes Jardim. Foi no dia 19 de setembro: um grupo de homens, entre eles Gomes Jardim, Bento Gonçalves e Onofre Pires, sentou-se bem aqui, onde você está agora me entrevistando, e planejou a tomada de Porto Alegre. Foram dez anos de muitas mortes, batalhas, sofrimento. Mas finalmente veio a paz.
VALMIR - Do que você sente saudades?
CIPRESTE - Em virtude da pandemia, sinto-me sozinho, sinto falta das visitas dos turistas, das aglomerações de cavalarianos e dos eventos na praça.
VALMIR - Um medo?
CIPRESTE - Às vezes temo pela minha morte: em outubro de 2003, acordei com fogo no meu caule. Até não entendo por que vândalos colocaram gasolina e fogo e tentaram me matar. Dois motociclistas, que estavam na madrugada entregando jornais, me salvaram. Chamaram os bombeiros, que contiveram as chamas. Antes disso, minha vida foi ameaçada outras vezes. No século passado, a família Gastão Leão me adotou e, junto a um grupo de ambientalistas, cuidou bem de mim. Curaram algumas feridas e dores que a idade me trouxe. Desde então, sinto-me melhor cuidado, alimentam-me às vezes com terra adubada e água.
VALMIR - Como você se sente por ser a árvore símbolo da cidade?
CIPRESTE – Orgulhoso, mas, como vocês humanos precisam de outras pessoas para viverem, eu preciso de outras árvores. De certa forma represento todas as árvores da cidade. Lembro que foi o prefeito Solon Tavares, em outubro de 1990, através da lei número 1000, que me instituiu como Árvore Símbolo de Guaíba. Pela lei, a prefeitura, através de seus técnicos, ficou de promover a recuperação e os necessários cuidados a fim de aumentar o meu período de vida. A lei prevê ainda que, anualmente, no Dia da Ecologia - 04 de outubro, a prefeitura promoverá atividades que visem à conscientização da comunidade sobre mim e sobre os cuidados de preservação necessários.
Recordo que mais tarde, já neste século, em 2001, o governador Olívio Dutra declarou-me imune ao corte. Em 2003, passei a ser integrante do patrimônio cultural histórico do Estado do Rio Grande do Sul através de projeto do deputado Giovani Cherini.
VALMIR - Um sonho?
CIPRESTE - Ver mais árvores da minha espécie na cidade. Sinto-me só às vezes. Gostaria de uma cidade mais verde e florida. Espero que a paz aconteça de fato no Planeta. Que as pessoas sejam mais tolerantes, mais humanas e solidárias. Que neste lugar histórico eu possa irradiar muita luz, boas energias para a cidade e para todos. Essa foi a primeira entrevista que concedi a um jornalista. Agradeço por teres ter estado aqui me ouvindo e me fazendo companhia nesta linda manhã.
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