Pandemia interrompe caminhada pelo mundo mas a luta contra o preconceito prossegue
Atualizado: 19 de set. de 2020

Quais os motivos que levam uma pessoa a largar a família para ser frei? O que faz um frei percorrer o mundo a pé? Marcelo Monti, 42 anos fez e está fazendo isso. Tornou-se frei e está realizando projeto de dar uma volta ao mundo a pé. A ideia é caminhar pelos cinco continentes durante dez anos. O objetivo é de chamar atenção diante das mortes por HIV/Aids. O projeto Caminhos de Aline nasceu depois da morte da irmã, vítima da Aids.
Na luta contra as mortes por HIV, saiu de Porto Alegre em 28 de agosto de 2018. Guaíba foi a primeira cidade que o acolheu depois da saída da Capital. Foi convidado pelo diretor do Instituto Gomes Jardim a conversar com os estudantes, onde deixou uma mensagem de valorização a vida. Foi acolhido para passar a noite na casa de uma família no bairro Alvorada. Seguiu seu caminho em estrada de chão batido em direção a Barra do Ribeiro. Nos últimos dois anos percorreu diversas cidades gaúchas e sete países pela América Latina, totalizando 9.737 quilômetros. Ingressou no Uruguai e passou pela Argentina, Chile, Bolívia, Peru, Equador e Colômbia. Foi recebido por famílias, entidades religiosas, dormiu na beira da estrada e conversou com estudantes, moradores e foi entrevistado por jornais, rádios e emissoras de tv em diversos países, levando sempre sua mensagem. Viveu com cerca de R$ 20,00 por dia, com doações de amigos. Com a pandemia, teve que interromper o projeto na Colômbia e retornar a Porto Alegre.
“Foram mais de cinco anos de planejamento, pensei em vários detalhes e costumo brincar dizendo que tentei prever até mesmo o imprevisto, mas, é claro, que uma pandemia dessa dimensão não estava em minha lista”, comentou Monti.
“Apesar de toda essa situação, sigo convicto, não desistirei. Essa é apenas uma parada, pois há muito para ser vivido, visto e contado. Espero poder retornar do ponto em que parei, em março ou abril. No entanto, antes que se tenha a garantia de uma vacina, é difícil fazer qualquer previsão”, observou o frei.
FOTOS DA PASSAGEM POR GUAÍBA EM 2018
-Encontro com estudantes da escola Gomes Jardim.
-Saída do bairro Alvorada, após ser recebido por uma família que dforneceu hospedagem.
-Coordenadora da época do serviço DST/Aids Guaíba, Janete Guteres.
-Na estrada Barra do Ribeiro, Luciano convidou o frei
para almoçar na sua casa.




A infância
O frei que passou uma infância pobre. A família teve que percorrer diversas cidades gaúchas, até chegar a Porto Alegre. Na Capital, a vida não melhorou. Um dia ser convidado a ingressar na vida religiosa. Escolheu os freis capuchinhos. Sentiu-se bem acolhido e começou a conhecer melhor o sentido da vida franciscana, seguindo os passos de São Francisco de Assis, o santo defensor dos pobres e da natureza. São Francisco também foi um peregrino e o frei Marcelo quer nesta caminha levar uma palavra de esperança as pessoas que encontra e romper preconceitos em relação a Aids , entre outros.
“Espero que em breve o “Caminho de Aline – uma volta ao mundo a pé” seja retomado, pois há ainda muito a ser percorrido e, aqui, me refiro às estradas do mundo e também a viagem interior da qual a exterior é apenas uma metáfora. E, onde quer que estejamos, parado ou andando, avançando ou retrocedendo, que possamos dar a melhor resposta para nos tornar mais solidários, empáticos, justos e fazer com que esse mundo seja ainda mais bonito”, escreveu num artigo que pode ser conferido na integra abaixo.
O frei pretende retomar o projeto no próximo ano pela América Central América do Norte e África para continuar a levar sua mensagem e ideal franciscano.
TEXTO DO FREI MARCELO
Nos caminhos de Aline
Há dois anos, quando deixei Porto Alegre, para percorrer o mundo a pé, eu tinha consciência de que enfrentaria muitos obstáculos pois, se fosse fácil, não haveria apenas dois de 2010 milhões de brasileiros vivendo um périplo como esse. Os desafios foram dos mais variados, mas, ainda assim, previsíveis. Tive, por exemplo, que acampar próximo à geleira Pastoruri, no Peru, com sete graus negativos, a uma altitude de mais de 5200 metros. E, talvez, o mais inusitado que tenha vivido ao longo dessa viagem foi o ataque que sofri de autóctones equatorianos, que me bateram por suspeitar que eu estava ali para roubar a comunidade. Foram mais de cinco anos de planejamento, pensei em vários detalhes e costumo brincar dizendo que tentei prever até mesmo o imprevisto, mas, é claro, que uma pandemia dessa dimensão não estava em minha lista.
No dia 20 de março, quando o presidente colombiano decretou estado de emergência sanitária pela Covid 19, eu estava em Calarcá a, aproximadamente, 300 km de Bogotá. Havia caminhado por várias cidades do Rio Grande do Sul e por sete países, Uruguai, Argentina, Chile, Bolívia, Peru, Equador e Colômbia. Estava prestes a comemorar 10 mil quilômetros percorridos inteiramente a pé. Entre as medidas adotadas naquele país, para conter o novo Corona Vírus, estava o isolamento social e a proibição de se deslocar de uma cidade à outra. Não era algo que os cidadãos ou governantes locais pudessem escolher. Tratava-se de uma medida imposta por decreto presidencial, acarretando multas e detenções aos que não a cumprissem. Para mim, na prática, isso significou a impossibilidade de continuar viajando.
Durante a viagem, eu interagia com diferentes pessoas todo o tempo e nesse período havia sido acolhido por mais de 300 famílias. Cada dia eu estava em um lugar diferente. Então, de repente, fui obrigado a isolar-me por mais de quatro meses em um quarto de hotel. Como não havia nenhuma perspectiva para o recomeço da viagem e tudo indicava que eu poderia ficar parado por muitos meses mais, tomei a difícil decisão de retornar, provisoriamente, ao Rio Grande do Sul. Considerando que o projeto inicial previa uma viagem ininterrupta de dez anos, passando pelos cinco continentes, posso dizer que a pandemia interferiu diretamente no meu planejamento, mas, obviamente, isso não é nada se compararmos com o sofrimento de milhares de pessoas ao redor do mundo que faleceram ou ficaram gravemente enfermas pela Covid 19. Apesar de toda essa situação, sigo convicto, não desistirei. Essa é apenas uma parada, pois há muito para ser vivido, visto e contado. Espero poder retornar do ponto em que parei, em março ou abril. No entanto, antes que se tenha a garantia de uma vacina, é difícil fazer qualquer previsão.
Eu poderia destacar, ao longo desse percurso, os povoados distantes e isolados dos criadores de cabra do Chile, ou dizer o quanto me deixava impressionado o fato de que os mineiros daquele país achavam normal a gritante desigualdade social, que existe entre eles e seus patrões. Também poderia dizer que me cortava o coração ver senhoras de oitenta anos ou mais tendo que vender chá quente, até tarde, nas noites frias da serra peruana, porque, mesmo que tenham trabalhado toda uma vida, elas ainda não tinham nenhum tipo de aposentadoria. Ou que me comovia ver crianças peruanas e venezuelanas pedindo nos restaurantes. Eu também poderia falar dos infortúnios vividos pelos refugiados venezuelanos, que caminham pelas estradas do Peru, Equador e Colômbia e dos preconceitos que sofri por ser confundido com eles. Eu, inclusive, pensei em dizer que o elemento comum e predominante da América Latina é a pobreza. De fato, há uma gigantesca miséria que marca a vida de nossos povos, mas há algo maior do que isso e que merece ser ressaltado: as histórias de bondade e solidariedade que vi e vivi são, indubitavelmente, maiores. Há uma pela qual tenho especial apreço e, com gosto, quero dividi-la com vocês.


Por recomendação de uma pessoa, que já havia me recebido em sua casa, fui acolhido por dona Eva, uma senhora argentina de, aproximadamente, 75 anos. Desde o início, fui tratado como se fosse seu filho e, até hoje, quando me envia alguma mensagem de áudio, ela diz: “filho querido, como estás?” A casa era humilde, dois cômodos divididos em quatro espaços: a primeira parte é reservada ao seu pequeno comércio, a segunda há um sofazinho e uma TV como se fosse uma sala, a terceira era a cozinha e a quarta, dividida por uma parede e uma porta, era um quarto composto por duas camas, no qual passei a noite. Vocês notam a importância desse gesto? Uma senhora idosa, em um ato de profunda confiança e generosidade, divide seu quarto, um espaço tão íntimo e privado, com um estrangeiro desconhecido. Quem de nós faria isso?
Durante um ano e sete meses, com a força de meus passos, percorri todos esses países da América Latina e, com isso, aprendi que o extraordinário é feito de coisas possíveis e, de certa forma, simples, como caminhar. Podemos ficar surpresos com a distância que percorri, mas destaco que os quase dez mil quilômetros caminhados são o resultado de um passo, e outro, e outro. Ou seja, eu percorria aproximadamente 20 ou 30 km diários, distâncias que podem ser feitas por qualquer pessoa em bom estado de saúde e com um pouco de treino. Portanto, estou convicto de que é a soma de coisas factíveis que transforma o impossível em possível.

Poderíamos ver essa viagem como uma grande aventura ou como uma mostra de tudo quanto o ser humano pode realizar e superar. No entanto, sinto que, para mim, a caminhada está tendo também um sentido terapêutico, isto é, tem servido para me reconstruir interiormente e talvez até curar algumas feridas deixadas pela vida. O sofrimento, a desigualdade, as violências físicas e emocionais, que marcam uma existência, retiram nossas forças e, por isso, às vezes, passamos a crer que não somos nada e não podemos nada. Essa viagem, ao contrário, tem ajudado a reconstruir minha autoestima e a me ver com potencial para fazer coisas que eu havia pensado que não podia ou não conseguia. Permitam-me contar rapidamente uma situação simples, vivida ao longo do caminho, que talvez ilustre melhor o que estou dizendo.
Antes de iniciar a viagem, eu não era do tipo dado a expedições, aventuras, pescarias, acampamentos e coisas do gênero. Até então, eu nunca havia acampado em minha vida. A primeira vez que tive que armar a barraca, eu estava na Cordilheira dos Andes, na parte argentina. Já havia lido o manual e sabia que, para a maioria das pessoas, essa atividade tomaria dez ou quinze minutos. Fiquei frustrado ao perceber que havia levado mais de uma hora e meia para montar a barraca e, ainda assim, ela estava um pouco torta. Ao mesmo tempo, chorei de emoção quando me voltei ao que realmente merecia minha atenção. Eu estava sozinho, acampando em um lugar fantástico, onde a maioria das pessoas se quer imaginou estar e, o melhor de tudo, eu havia chegado ali caminhando. O problema da barraca com o tempo foi solucionado, através do treino. Hoje é algo que, de fato, posso fazer em poucos minutos. Com isso, não quero destacar uma habilidade manual, mas o quanto, através de um fato cotidiano da vida de muitos viajantes, estou me tornando uma pessoa mais segura e autoconfiante. Somente por isso eu já poderia dizer que está valendo a pena essa forma de viver. Mas, seguramente, é muito mais do que isso.
Fui chamado de Forrest Gump da América Latina por alguns jornalistas dos países que passei. Eu gosto e me identifico com esse título. No filme, as pessoas esperavam que o personagem, quando perguntado pelo motivo de sua corrida, oferecesse uma resposta filosófica, que servisse de inspiração para outras pessoas. Forrest corre, simplesmente, porque sentiu vontade de correr. Em outras palavras, ele não se pergunta pelo sentido da vida, ele simplesmente a vive. Da mesma forma, as pessoas esperam que essa caminhada tenha um motivo que se encaixe nos parâmetros que, socialmente e culturalmente, aceitamos como válidos para se construir uma vida. Eu caminho pelo simples fato de que tive oportunidades que me permitiram ver que é possível viajar caminhando. A princípio, essa pode parecer uma resposta simplista e óbvia, mas se está tão claro que é possível viajar caminhando, porque outras pessoas não tiveram antes essa iniciativa? Quando pensamos em viagem, pensamos em avião, ônibus, trailer, carro e, mais radicalmente, em moto ou bicicleta, mas nunca a pé.

Talvez, porque nos acostumamos a ver a vida sempre pela mesma janela, isto é, a partir dos modelos estabelecidos. Não estou dizendo que temos que romper com esquemas e convenções sociais. Tampouco penso que, para sermos felizes, temos que caminhar por dez anos, mas gostaria muito que essa viagem nos inspirasse a buscar alternativas que nos ajudem a amar mais e, com isso, fazer a vida mais leve. Espero que em breve o “Caminho de Aline – uma volta ao mundo a pé” seja retomado, pois há ainda muito a ser percorrido e, aqui, me refiro às estradas do mundo e também a viagem interior da qual a exterior é apenas uma metáfora. E, onde quer que estejamos, parado ou andando, avançando ou retrocedendo, que possamos dar a melhor resposta para nos tornar mais solidários, empáticos, justos e fazer com que esse mundo seja ainda mais bonito.
Frei Marcelo

