a sombra escrita da imagem de Altair Martins
35. Falam os homens do futuro
— Precisaremos vender a História antes:
lotear a praça e os ossos dos mortos
e calcinar a terra. Pavimentar a seguir os restos
e reservar apartamentos de janelas amplas
de onde quem possa pagar possa ver o rio
e esquecer assim o busto
que alguns nomes frequentavam
como zinabre sobre o bronze.
Um modo de vender a História é
promovê-la a edifício iluminado.
(Nossa imobiliária oferece donos).
— E antes será preciso enterrar a História
e deixar que a erva ocupe as frestas e que as flores
e os insetos frutifiquem sobre tudo que tiver relevo.
Será quando o cipreste da praça se condensar
num resquício de paisagem.
Também enterraremos o casarão em frente ao monumento
com o que teve de farda e sussurros de lança,
com o que foi de chuva e fogo ao cair da noite.
(Nossa secretaria de educação já converte
a História em Geografia, eliminando os pretéritos
dos livros da escola primária).
— Mas antes será preciso sequestrar a História
fotografando o sítio onde estiveram
alguns personagens que vendiam charque
só para provar que ninguém hoje está vendendo charque.
Depois, vamos decorar os postes da calçada
com as bandeiras do partido
e inventar parentes e ideologias
com que roubar os cavalos de antigamente.
(Nas eleições, já estão escolhidos nossos candidatos
que sempre foram candidatos
e por isso sempre foram escolhidos).
— E enfim nos restará beber a História
com gelo e dançar uma revolução
sem entender seu nome nem sua derrota.
Vamos usar as línguas mais heroicas
pra desmaiar sobre a paz do instante,
rindo do tempo em que aqueles coitados
não tinham aspirina.
E quando acordarmos, uma fumaça espessa
esconderá que não temos fala nem fisionomia.
(Sob um sol inteiro, nossas farmácias acenam
com promoções as mais interessantes).
CONFIRA: Áudio do texto narrado pelo autor Altair Martins https://drive.google.com/file/d/1Aa9IwFkH2ln17gZ-BG_tnpatwQsBBlnw/view?usp=sharing
