a sombra escrita da imagem {Altair Martins]
Eu não sei voar.
Não sei bater as asas como os outros,
ou girar as hélices que o seguro contra roubo protege,
nem alçar um salto que salte
muito além do cubano Javier Sotomayor.
Sou diferente das outras pessoas.
Do soalho da casa onde vivo,
observo os insetos e os donos da firma:
eles (os insetos) ou voam ou saltam ou picam
e nunca andam sozinhos.
Já os donos da firma, todos eles têm cartão de crédito,
e a televisão já explicou que assim você pode ver
as pirâmides do Egito.
Às vezes os donos da firma fazem aniversário
e vestem roupas novas e costumo
confundi-los com colibris
– sobretudo quando tomam água Perrier
e flutuam leves e mentirosos por alguns instantes.
Eu só o que tenho são as lembranças de um beijo
depois da Festa de São João,
quando nem sequer pulei a fogueira.
Não sei voar e este é o ponto:
gasto a sola do tênis
e arrasto o barro e a poeira,
levando este corpo que nem pesa até a parada do ônibus
que demora uma hora e meia pra chegar na Capital.
Nunca soube voar,
como também não tive o perfume dos lobos
nem fiz a bainha nas calças
ou usei o broche de doador de sangue.
Também não fiz a crisma.
Então definitivamente não voarei e,
mesmo que envelheça,
já sei que vou catar, entre a grama do pátio,
um brinquedo perdido que não é meu:
um super-herói que usa capa
e habita as nuvens
e não sente frio no inverno.
Todos que voam não sofrem.
Todos que voam têm razão
quando dizem que não fiz por merecer.
Não sei quando me tornei um leitor cansado
ou por que nunca quis ser dono da firma.
Acho que nasci pra morrer e não subir ao céu.
CONFIRA o áudio do poema com o escritor Altair Martins: https://drive.google.com/file/d/1M7ILAfmsatlL1Pj2sWc5ZNvC1r-Syiqk/view?usp=sharing