a sombra escrita da imagem {Altair Martins]
17. Castigo na primavera

Nesta primavera não merecemos flores,
esse fenômeno da botânica
que no fundo é da vida a estratégia do simples
e do irresistível
e que, para nós, é apenas beleza convertida em mercadoria
ofertada aos amores e aos mortos.
Pelo inverno mantivemos o sono,
enquanto seguia o futebol e os torturados não eram os nossos.
A verdade é que somos os descartáveis
se organizamos o bairro pelo que se ganha
e não pelo que se perde,
e o que chamamos de riqueza talvez se limite à roupa
que também se suja quando esconde o lixo
e as pessoas que o pib não enxerga nem quando se amplia o mapa.
Agora que sabemos mais que o professor de Inglês,
só há espaço para as flores se elas custarem tão caro
quanto a Dama da noite do Sri Lanka.
Então agora mesmo não merecemos nossas flores,
como não merecemos uma chuva sequer
ou um corte de cabelo.
Mas merecemos o setembro amarelo
e o seu carro blindado particular,
helicópteros particulares que recolhem o trem de pouso,
as lanchas particulares e os jatos particulares e os iates particulares
e os condomínios com cerca elétrica.
Merecemos uma escara que nos tome, a todos, o corpo
num país onde não haja hospital público.
Merecemos as flores sempre estrangeiras do Google
e a infestação das falsas notícias
(entre elas, as mais sedutoras)
na congestão da esperança e da cura.
Nesta primavera,
deveríamos ter vergonha na cara
e não olhar pras flores quando elas abrirem
— porque elas insistirão em abrir
na vingança de serem belas e perfumadas
e inúteis.
Nesta primavera,
o que merecemos é falar de dinheiro
até morrermos de sede.
Estamos de castigo.
CONFIRA:
Áudio do texto narrado pelo autor Altair Martins : https://drive.google.com/file/d/1Is_rucr3bu3smDrKmGOA0-xAjQr4UZOT/view?usp=sharing