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a sombra escrita da imagem {Altair Martins]

12. Marcela: quarentena 2020



Aqui lecionei por três anos e meio

e não é difícil reconhecer,

na sala de aula onde o oco responde a tudo,

que as cadeiras ainda mantêm o hábito de formar suas duplas

e não me alegra o comportamento enfim ideal de suas sombras

nem este silêncio

que pela primeira vez pede que eu leia em voz alta.

Me sento na fila do fundo

onde sentava a menina Marcela

que não tinha sobrancelha por causa de uma queimadura,

e agora que os insetos vasculham meu eco,

confesso as tantas vezes que tive de ser feio, mais velho,

e confesso que mostrei os piores dentes

e que podia ter feito melhor do que fiz.

Carrego ainda a minha letra cursiva

que treinei pra ser amiga

e que tantas vezes fugiu

e me fez cretino.

Penso no álcool que percorre as mãos e percorrerá a fórmica

e percorrerá o chão e percorrerá o quadro e percorrerá paredes

e as maçanetas e os vidros e tudo que a direção mandar que percorra

e penso nos seres minúsculos

– todos eles que abrem este chão

onde nos encaixar na natureza.

Ensinei aquilo que a menina Marcela nunca vai usar na vida

como a ideia que a espantou

de que a Terra era uma bola todinha viva

e que por isso nós é que pertencíamos a ela

e não contrário.

Mas agora,

que a política ficou incomunicável

como uma igreja ou um time de futebol,

este é um minirreino à espera da substância

que um professor vai imprimir em casa

e levar de bicicleta, na quinta-feira,

até as províncias aonde as pontes não chegam.

Suspiro ao pensar em Marcela

e na sua mãe e irmãos

enquanto na televisão a construção civil lamenta suas perdas.

Se a bicicleta não chegar,

temo que Marcela estique a mão

e pegue um punhado de terra

e ponha na boca

pra ver que gosto tem.


CONFIRA:

Áudio do texto narrado pelo autor Altair Martins https://drive.google.com/file/d/1L2uOVUXo1cQQQoorK79csvW2GOHQyzxT/view?usp=sharing


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