a sombra escrita da imagem {Altair Martins]
11. Uma sombra de bicicleta
Tenho este gesto na sombra:
sou a bicicleta que espera
e fura o sol
e estende na areia sempre mais clara
uma perspectiva de treva e de instante.
Mas se a sombra da bicicleta
pode ser mais magra que a bicicleta,
sucede também que a minha sombra
(que eu tinha por marionete)
ou se faz de surda
ou não me obedece.
Pois aquilo que projeto em cinco dedos sobre a parede
é a silhueta de cinco dedos
presos a esta mão que me parasita
a fim de sobreviver ao naufrágio
que a minha penumbra inaugura.
Minha sombra não sorri quando quero
e assim me ocorre
que não sou o que a luz permite
mas o que ela despreza.
Me resto sob este corpo
que agora caminha e se descobre opaco
e que ultrapassa e é ultrapassado
pelo que sou de companhia e de desdém.
Também as pessoas que dizem que me conhecem
só conheceram o indício
mais alto ou mais baixo
que carrego comigo.
Mantive o figurino porque enfim é teatro.
Andei atrás do que fico,
e o meu vulto só vai me encontrar
lá onde redundamos.
Entre o sol padrasto
e a escuridez deste chão que não quero olhar agora,
me vestígio do que já sei.
Mas é que nunca me senti tão sozinho assim.
Áudio do autor: https://drive.google.com/file/d/1bBTAg54y-41P5xZLdFg0dgf-OnRiUEcy/view?usp=sharing