a sombra escrita da imagem {Altair Martins]
10. É impossível pescar um barco

No fundo do rio onde aprendi a pescar
estão aquelas pessoas que hoje usam outros rostos
e também a Escola Estadual Nestor de Moura Jardim
onde pela primeira vez escutei o meu nome.
Volto a pescar e de baixo pra cima
e enconsto a mão na água que me cobre
para evitar a fisga
porque não quero me ver no espelho
mas despescar o que já fui.
Dorme na areia suja
que imagino fria
o sonho de ser gerente da Caixa Econômica Estadual
e depois escrever um poema sobre a palmeira
que ainda existe na praça onde havia um tamanduá.
Falta-me a foz
onde a minha voz é redonda e engraçada,
quando vou às festas com o perfume do irmão mais velho
e ainda danço sem saber que sou feio.
(Se ventava, meu pai vinha com a roupa de jóquei,
e aquele cheiro de aventura me confortava
como eu dormisse entre os cavalos).
Porque prefiro o rosto onde minha mãe aplicou os curativos
— um rosto sem barba
num corpo sem barriga
e também porque antes eu podia comer pão branco
e não sabia o que era insulina.
Mas se ainda vigio a pele da água
é só porque espero um telefonema bom.
Por enquanto, guardo uma única certeza:
a de que até os tardígrados,
esses seres minúsculos e tão valentes
e capazes de viver no vácuo do espaço,
também eles se abraçam
apenas por prazer.
Deitado junto aos mariscos que vieram da China,
naquele tempo eu fui um escritor
que nunca cheguei a ser.
Então talvez um dia eu descubra
que não posso pescar meu barco
nem mesmo com essa linha que se esconde,
que teima
e é mais burra do que eu.
Áudio do autor: https://drive.google.com/file/d/1xSzvKDwOhEh_V9pgCZIQsaeJWOiSmEPZ/view?usp=sharing
Audio da poesia de Altair Martins: