a sombra escrita da imagem {Altair Martins]
22. Sinistro da biblioteca incendiada
Um dia a minha biblioteca queimará,
e os autores brasileiros que me ensinaram a ler
e que nunca ganharam o Prêmio Nobel
irão explodir com o fedor
das minhas axilas.
Queimará fácil e entretanto mais lenta
do que se a família vendesse os livros.
Um a um vão se consumir os dicionários
e as lágrimas
de alguém que admirou a primeira letra que viu
numa garrafa de guaraná.
As unhas bem feitas sofrerão à toa
nos compêndios de arte.
Incendidos chiarão os exemplares de professor,
uma esperança ridícula,
e as imagens da cidade
que me ensinou a caminhar sem pressa.
Ouvirei estalarem dolorosos os vidros da paisagem
onde sempre nasceu o mesmo sol.
Insetos não escaparão da biblioteca
antes da fumaça.
E ficarão pra trás
também calcinados
os resumos que a umidade recolheu
para que ninguém encontrasse uso.
À beira de um rio,
a chama de cada página vai se alastrar ofensiva
mas passo a passo
com uma escada de pintor
até as nuvens
e até as águas
na minha imaginação
(com que sempre exagerei em tudo).
Um fulgor de fim de mundo
cozinhará a cidade em frente
e a deixará estendida como uma cobra de fuligem.
Depois, o que se fez luz acabará esquecido.
Será um amanhecer ou um entardecer:
bonito, nada mais.
Sob as cinzas
de uma fogueira de acampamento:
as coisas que li.
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