a sombra escrita da imagem {Altair Martins]
19. Duas crianças mbiás brincam com flores

Duas crianças mbiás brincam com flores.
Não entendo ainda como:
as informações que leio são arranhadas
pela saliva automática e sua imagem sem fonte
e sempre disponível
e mais verdadeira que as dos satélites
(que de longe nos veem tão perto).
E assim e logo e logo os incêndios que já consumiram
os aguapés e os jacarés do Pantanal,
e que aqui e ali espocam,
em focos de fogo, farda e fuga,
são então mentiras,
e a única verdade é que o agro é pop.
Mas duas crianças mbiás brincam com flores.
Caminhamos preguiçosos sobre os resumos
como quem deita numa cama de hotel.
O congresso do meu país
decidiu criminalizar os símbolos vermelhos,
mas isso, claro, não incluiu o fogo
porque também ele,
como a morte por desnutrição,
é coisa que pertence à natureza,
essa natureza que planta soja,
elege senadores
e aumenta o preço do arroz.
Por isso duas crianças mbiás brincam com flores.
Ouço dos familiares que a doença derruba os eleitos
e que a fumaça procura os índios
e que viver alheio aos muros sem reboco
abençoa e instaura a paz.
E por isso também a onça que queimou as patas
e todas formas carbonizadas depois do que era floresta
e rio
amanhã serão borra
na minha memória delinquente.
Apesar disso, duas crianças mbiás brincam com flores.
É que passamos a adorar os espantalhos
inventando fantasmas pra justificar o medo.
Não que eu não temesse (e ainda temo)
as mentiras sobre a Guerra do Paraguai.
Mas também me sinto cansado dos mortos e assim me rendo.
O país que devo amar é este do olho caolho
que bebe a minha cerveja,
olha para o clima, faz o sinal da cruz e se absolve,
apenas porque declara uma fé:
a de enquanto o copo estiver gelado
os bichos e as plantas convocarão lá seus poderes
para escapar da terra quando a terra evaporar.
Claro, duas crianças mbiás brincam com flores.
Áudio do autor: https://drive.google.com/file/d/1w3D-VCola4lmDcjaJzWArGbGBHaDS0sU/view?usp=sharing