a sombra escrita da imagem
36. A CIDADE ÀS CINCO HORAS DA TARDE
Altair Martins
A foto é de Anderson Oliveira
A cidade se enfurece às cinco horas da tarde.
Tem motivos:
as coisas fora do lugar comentam a doença,
os pneus novos e uma silhueta de isopor.
Na esquina seguinte,
ignoramos que o nome da rua era mais bonito antes,
e a conivência com a política
pede piscina e um barman.
Não temos tempo.
Depois das cinco,
formas pontudas se levantam com a chuva,
que não chega.
Somos desgraçados balançado os corpos
e os bolsos e,
repletos ainda de medo,
confiamos em um deus que recende a talco johnsons
e nega os contraceptivos.
Outro avião cairá (talvez às oito)
no horizonte de outro lugar,
mas o futebol vai seguir afirmando que tudo é permitido,
inclusive as pessoas canalhas que escrevem isso nos jornais.
Ainda esta cidade:
soterrada de progresso e infelicidades,
ela se finge de viva e dá seu passo feio às cinco e meia.
Crianças brincam entre muros,
e as moscas surgem,
conferindo o que desperdiçamos
sobre os guardanapos.
Às seis da tarde a cidade chora sua estiagem.
É uma chuva inconstante: meio revolta, meio aplauso.
De um lado, os edifícios adiam a noite
que virá ferida, com as piores músicas
e um cheiro de comida azeda.
Terá perdido (a mesma noite) o último botão da camisa
e chegará com sua dignidade ameaçada.
Esperamos aliviar seu corpo inchado
oferecendo ventiladores e condicionadores de ar
e de cabelo
para a paz do sono
e o fim da caspa.
Na cama, vestimos os pijamas impecáveis
pois nunca erramos.
Já entregamos os papéis ao patrão
para que ele reze a distribuição da renda.
Somos pequenos e somos roucos
e desejamos mesmo votar no dinheiro.
E essa é a única verdade
com que dormimos.
Confira o áudio do autor: https://drive.google.com/file/d/1XVqhgWFZwKiSyzzZsD3Xh9kMioHtRswN/view?usp=sharing