- Nova Folha Regional
a sombra escrita da imagem
33. NOSSA CASA SOBRE UM POSTE DE LUZ
por ALTAIR MARTINS

Nossa casa pode estar
onde a concessionária decide os opcionais,
como os bancos de couro e o candidato a senador.
Pode estar onde a nova igreja se declara legião
e cura para sempre a sombra antes comprimida
pelo ônibus que muge às seis da tarde.
Nossa casa pode ter sucumbido
na margem do rio que não recebeu aterro.
Ou talvez flutue entre a poeira pesada e indecisa
que vai trabalhar uma vida onde morar sem sono.
Se for a casa que ainda deve ao banco,
convém que se sente onde o dinheiro rasga a cara.
Se for a casa que confia nos homens de um quartel,
pode estar no gesto de arma que ameaça os índios
e entrega os bichos ao garimpo.
Se for a casa que tosse,
não sabe que espera uma vaga de hospital
onde as camas matam.
Se for a casa de estudantes da universidade pública,
deve estar visível por enquanto na página 115,
sob a luz fraca que contorna uma coisa provavelmente bela
mas que só a álgebra desentorta.
Se for a casa própria,
voltamos a nascer tartaruga ou caracol.
Talvez a nossa casa tenha emigrado de um país
cuja língua se escreve com os dedos dos pés.
Talvez as paredes, janelas e portas tenham navegado
sobre corpos atirados ao mar
ou queimados na praia.
Mas é bom lembrar que não fizemos a nossa casa
(com cuspe) sobre um poste de luz.
Também não plantamos casa alguma,
pois só ensinaram isso de cavar o chão
na Primeira Grande Guerra,
um pouco antes de nascerem os supermercados.
Ainda mais: se for a casa de aluguel,
tudo nela vai sucumbir rápido
nos portos e nas pontes.
A casa não existirá se perder a chave,
se cortarem a água do bairro
e não houver com que encher a piscina das crianças.
Nem existirá se ainda existir depois do despejo
e não guardarmos a voz que teve
nos horários de verão.
Custa lembrar que a nossa casa
foi feita sobre as casas dos outros.
Confira o áudio do escritor: https://drive.google.com/file/d/1bT_sJU-aMREt2GmiZCG3G7yjQMWrtjfO/view?usp=sharing