a sombra escrita da imagem
29. Aprendizado na sombra
Deitado ao chão
no alto do Morro Santana
em Porto Alegre
pela primeira vez eu vi um silêncio tão sério
a quem eu não podia mentir.
E descobri que eu deveria ter arquitetado pontes,
ou destruído pontes, não sei.
Só sei que eu poderia ter matado ou morrido em Dresden,
no chão ou no avião,
e por isso eu não veria a morte de perto.
Só que não foi certo ter enganado
tantos editores
com um punhado de enganos que ainda vestem suas capas.
No morro,
o silêncio sério continuava entre as copas das árvores
onde havia um mapa e havia rios
(por entre as folhas)
que o meu olho inventou
antes que eu dormisse.
E não sei se sonhei,
porque o sonho cansa mais que o cansaço,
ou se naquele chão irregular do Morro Santana
pude perceber: que novidade são as minhas costelas.
Fui alguém que respiro
e que só por isso é parte do mundo.
E pensei:
pior
que eu
só o que o cascalho sabe imitar de um juro bancário.
pior
que eu
só talvez a chuva num casamento,
um churrasco sozinho,
ou talvez a jaqueta que adoro
e que nenhum alfaiate conseguiu restaurar.
Deitado ao chão
no alto do Morro Santana
em Porto Alegre
descobri o cheiro de mim:
que tenho tristezas de ave quase extinta,
que tenho os cabelos que me esquecem,
que faço errado justamente o que mais faço:
comida, sexo, escrita.
Ora, mas mesmo pobre eu fui mimado, me disse,
porque a literatura me deu uma casa,
alguns reféns
e em troca recebeu toda a culpa.
Não caberei por isso
na palma da mão
quando alguém fechar pra dar um soco.
Nem fingirei que faço algo pros outros
quando gosto do carinho
de uma luz que vacila num poste.
Áudio do autor: https://drive.google.com/file/d/1xHXr0zPsa2DrHUo51pSdUkcr9sLAc0Nv/view?usp=sharing