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a sombra escrita da imagem



Este navio que risca a pele da água

(o navio que não trouxe arroz, não leva óleo e sempre parte),

um dia me deixará sozinho na areia,

sem voz para reivindicar os meus mortos

— e eu torço contra isso.


As palavras não são mais macias que os ossos,

não são.


Sei que um dia o navio cumprirá a promessa,

arrastando sua couraça vermelha que não sangra,

e temo que me deixe, como já deixou, sem os meus bichos.

Porque assim que eles nadarem entre os juncos

eu não lembrarei o nome de cada um

pra me despedir de cada um,

e isso me fará muito mal.


As palavras não mais mansas que um gato sem unhas,

não são.


E sei que um dia o mesmo navio fugirá num só rugido

me deixando pesado sem meus irmãos

e eu me atrapalharei

com essas duas mãos perdidas no corpo.

Cuido não ter corpo capaz de dizer

que não inventei uma fotografia de aniversário

onde fomos felizes ao mesmo tempo.


As palavras não são mais leves que os sapatos,

não são.


E sei também que o navio terrível

poderá apitar, e o apito ordenará que eu não suba,

que da areia eu assista ao longe à minha mulher

e também aos meus filhos

— os dentes dos filhos ainda serão

os primeiros dentes eu vi nascerem —

e eles e ela estarão sorrindo para os juncos que esperam na margem luminosa.


As palavras não são mais baratas que a gasolina,

não são.


Se por fim o navio criar barbas

e levar a minha mãe tão velha que impossível de estar viva,

mesmo que eu suba numa aba de vento

não saberei com qual flor certa se acena

pra que a mãe nos veja uma última vez.


As palavras não são mais covardes que um homem armado,

não são.

confira o áudio https://drive.google.com/file/d/1-3YizTAWFyRjIogpjUI6FEnA3eM71fCr/view?usp=sharing

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