a sombra escrita da imagem
69. SUPERPODEROSOS ATRAVESSAM A CIDADE
{Altair Martins]
Escritor e professor

[Foto de Leonardo Sessegolo]
Temos superpoderes
de parar um ônibus de 14 toneladas
apenas com um aceno.
Nossa voz ordena que máquinas assim
voem pelas avenidas
embora rentes ao chão.
Sobretudo quando é cedo,
temos a velocidade de chegar ao trabalho
com apenas 20 minutos de atraso
e assim permanecemos incógnitos.
E apesar de tudo o que os vidros desperdiçam,
nossa visão aguda atravessa as coisas
e não desperdiça nada.
Comandamos, todos os dias,
nossa equipe de extraordinários sempre a postos.
Lemos a mente de cada um e sabemos
que todos disputam uma trincheira,
uma receita que traga o amor de volta
ou um abono salarial.
Mentalizamos o time de futebol por que torcem,
e por isso nos é dado entender tanto o fracasso
quanto o riso assustado.
Sempre feridos, e é assim que não nos ferimos fácil.
Nossas mãos crescem conforme a fome
e o medo e nos cicatrizam das palavras cruéis.
Temos pés alados dispostos ao salto, ao assalto
e ao desejo que nutrimos uns pelos outros no domingo.
Nossas capas ficam mais fortes com as chuvas.
Nosso fim de mês nos garante acima
do cordão da calçada e das frutas estendidas
cujo veludo ou verniz nos esperava.
Contamos com o superpoder da espera
e por isso esperamos incansavelmente,
vagando pelas vozes de um rádio
(esperamos),
viajando para as fotografias mais distantes
(esperamos),
(esperamos) que o portão de casa se abra
dourado e nos abrigue no esconderijo
que somos nós, enfim, sem uniforme.
Tudo agora é claro: nunca morreremos,
porque depois de nós, sempre outros.
Secretos, sob o chuveiro dos normais,
detemos apenas com o corpo
as águas de um banho que é apenas nosso.
[Altair Martins]