a sombra escrita da imagem
66. NÓS, OS QUE ENVELHECEMOS À FORÇA
[foto de Santiago Martins]
Ao Pedro Gonzaga
A nossa geração não se reconhece agora
na tinta original da estação.
Aqui (parece ontem) o véu não acenou do trem.
Atrasados assim como a sombra,
sem luz e sem libido,
aceitamos o que cai da escada.
Os que escreviam comigo
foram todos embrulhados no jornal do dia
e dormiram cedo demais
no fundo das mesmas gavetas.
Tínhamos cultivado menos plástico,
menos novidades. E contudo,
iguais àquelas mãos que mostrávamos na fotografia,
reconhecemos bem de perto o atraso
destas que ficaram e tanto doem
mais que qualquer dente.
A palavra que ninguém entortou
e os presentes mais que merecidos,
segundo a crítica e a imprensa
(que eram a mesma coisa),
acabaram injustificados diante de novíssimos dedos,
os invisíveis e especializados em tudo.
Talvez nos tenham envelhecido
antes do tempo
e só porque esperávamos qualquer coisa
que chegaria à estação
sem os anúncios e as sirenes do espetáculo.
E todos os méritos estiveram à nossa frente,
e todos os mais modernos tênis
caminharam ao nosso alcance.
Não chegamos, amigos de cisco,
e nossas meias encardiram
bem depois de perderem os elásticos.
Não tivemos lugar aos vinte anos.
Somos velhos aos quarenta.
Da parede da estação sem trem
se descama uma folha
atrasada demais pra ser tinta.
Antes do sono,
passaremos a mão no degrau da escada
(o primeiro de quem sobe),
tão contemporâneo quanto nós.
[Altair Martins]
Confira o áudio do autor:https://drive.google.com/file/d/1NBb9cIzK1EfzzXpfwCLXfsInYFWwfqA6/view?usp=sharing