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a sombra escrita da imagem

64. A INVENÇÃO DOS TELHADOS

{Altair Martins]

Escritor e professor





[foto de Santiago Martins]

Devo ter participação

na invenção dos telhados:

meus cabelos continuam a crescer sobre a cabeça,

e a umidade que me torce os nervos

ainda não vem da chuva.


Claro que minhas mãos agora doem.

Me firo com faca,

com tesoura, com portas.

Os dedos parecem perdidos às vezes,

e eu não os ajudo

se esqueço que estudei violino e contrabaixo

e que fui bom no judô.


O fato é que meus pulmões

nunca fumaram. O fato é que

corro bem, apesar da sola dos pés.

Até a minha tosse seca,

como dos cavalos de meu pai,

cansou da espera,

e neste inverno também sofreu

com o preço dos combustíveis.


E é fato também que meu coração bate

no ritmo do meu passo,

e o sinto melhor

quando o meu time perde.

Os bichos, os filmes e a literatura

treinam regularmente as minhas artérias.

Durmo e acordo com sonho

ou sem sonho.

Ronco de lado e de bruços

e tenho dores nas costas.

Há roupas com saudade de mim.

Mas me confundo com a obra de um arquiteto

todos os dias:

depois que levanto,

insisto em parar de pé e não desapontar o projeto.


Os rins e o estômago passam bem,

e a hemoglobina permanece calada no canto dela.

Não tenho olhos de diabético

e sou tão destro com o perto quanto o longe.

Só a glicose a balançar a estrada,

me derrubando o ânimo ou

assombrando com corpos de pães, de doces,

de massas que não como e tento ignorar.

Calculo carboidratos,

meço o sangue com fitas

e bebo cerveja gelada

como um criminoso.


Por enquanto sei que

minhas duas pernas seguirão carregando

este corpo telhado.

Quando chover aqui dentro

morrerei abraçado com elas.


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