a sombra escrita da imagem
59. UM EPISÓDIO DE CULPA
{Altair Martins]
Escritor e professor
[foto de Santiago Martins]

Fui um vulto no ar que a noite
bafeja.
Me despaço no que fiz
e no que hoje trago
de tudo que esteve sob o foco
de uma câmera fotográfica.
Um cão guarda um carro de compras
de supermercado
e que agora tem dono: um morador das ruas.
O cão tem uma dignidade
à altura do pão e do carinho.
Mas sente frio
e no momento não late.
O morador de ruas, também.
A noite fez casa em mim
como essas coisas de dentro do corpo:
veias, músculos, gordura e dores,
Porto Alegre e um cheiro
de rio encalhado na praia.
Meus dedos não têm dedos
(ao contrário do meu rosto
que tem outro rosto
quando olho).
Sou fraco.
O cão se estica mais que as luzes
e mostra interesse
por tudo o que desprezamos.
O cão descobre a cidade,
e só depois a falta de vento
vem cobrir de cansaço e de borracha
o que restar da avenida.
O cão tem cheiro de trabalho.
O morador de ruas nasceu sem nome.
Fui um vulto no ar que parte
da noite.
Me confisco no que escrevo
e agora risco
sob a mira clandestina
desse episódio que escorre.
Áudio do autor:https://drive.google.com/file/d/1hsmEf8Aw1QSA0oF-Yr-xvuKMnXp2ta1e/view?usp=sharinghttps://drive.google.com/file/d/1hsmEf8Aw1QSA0oF-Yr-xvuKMnXp2ta1e/view?usp=sharing