- Nova Folha Regional
a sombra escrita da imagem
26. SOBRE UM CÃO NUMA ESTRADA DO SONHO

No que dormi, apenas uma estrada de terra
pela qual desce um cão
e tantas coisas a dizer:
que vejo que perco a minha mão direita,
que olho o fim do braço até uma forma que chora
até um vão onde dedos antigos se mexiam
e desaparecem do espaço, dos retratos,
mas ainda não do desconforto.
E logo a estrada e o cão me caminham
e a luz que vence os eucaliptos em fila
e desinfecta os desastres de cada passo
pergunta se acredito
e assim me perco entre a letra cursiva
e o que serei sem a mão direita.
Não acredito e não tenho orgulho.
Porque sei que a desconfiança acerca da estrada
advém do que dela narram e de um cão que pode ser perigoso.
Mas nisso que é sonho e névoa,
me cheiro de coisa repetida que tanto enjoa.
Sou eu no cão na estrada e me vejo
na curva que se deita e dorme leve
com a esperança de que darei certo amanhã
mesmo sem a mão crente que fecha as cortinas.
A estrada de chão e o cão: sou feito dessas margens que se seguram,
que esperam que eu volte, esperam que eu chegue, pela frente, já aos lados,
sem nenhuma desconfiança dos campos de soja.
O gosto de terra molhada na boca
ficará vestígio depois que grãos maiores rasparem o que será garganta
e a mesa do escritório calar que eu sente.
Mas antes estarei sozinho sobre a cama,
e o tecido que as fronteiras do olho trouxerem
se costurarão hoje numa roupa feita à medida
para o dia de agora.
Sobre a estrada sobre o cão vai chover naquela noite de sonho.
Em qual das mãos a água cairá em mim?
Em qual discussão do ouvido
latirá o que vem com o sol depois
quando os eucaliptos soltarem sob a casca
o cheiro de coisa imatura?
Sim, cão, nos faltará uma fé qualquer perdida
para aceitar que matamos desarmados,
que matamos dormindo
e que a minoria é matematicamente maior.
Sem fé em ti, estrada de sonho,
não haverá mãos pretas que cortaram cana,
não haverá mãos virgens que seguraram nojo,
nem homens que enriqueceram a partir dos bens da família rica.
Mas não tenho fé sequer nesta minha mão direita:
está aqui sobre a mesa e ainda não a encontro.
Será preciso ensinar a esquerda a rezar pela irmã desaparecida,
a ter destreza
e assinar logo e sem questionamentos
o que sempre é necessário.
LINK COM ÁUDIO:https://drive.google.com/file/d/1a9wrfT_MUVpJw56AR8pUkAEIY1jmf6md/view?usp=sharing