a sombra escrita da imagem
57. A NOITE SEM PONTO DE FUGA
Texto e áudio de Altair Martins
Foto Valmir Michelon
Digamos o que uma noite comporta
de mais antigo:
os segredos das formas
que se esboroam no olho
ou se dependuram numa gota de luz.
Digamos o que uma noite esconde
de pano de chão e anemia.
Quantas vezes limpamos a boca desta noite
que baba.
Já guardamos sob a carne
o que a neblina diz sobre nós
quando atua de respiração de grilo,
serragem de estrelas
ou pesadelo com poeira.
E vivemos assim:
atravessamos noites e noites
e aquilo a que os poros se abrem
chamamos de mundo,
chamamos de agora.
Chamamos de frio
o que o nariz executa
sentindo como se fosse dor
algo que na ponta dos dedos apenas existe.
Digamos que os fios que nascem da esquina,
e cortam as paredes e o sono,
esses fios que nos comunicam
nunca se tocam fora do conflito.
Seguimos na noite,
porque, digamos: a noite nos resume.
Calçamos os sapatos
que já não escutam o câmbio,
não atendem à lógica ou às luzes
dos prédios e dos aviões.
Só o que temos é a boia de um bar
dividindo os caminhos:
voltarão pra casa os que não querem se afogar.
Mas há os que querem.