a sombra escrita da imagem
54. Às vezes é a nossa pele e às vezes não
{Altair Martins]
Escritor e professor
Veja como a nossa pele não sente frio
mas é solidária.
Acho que dormimos sobre a pele,
entende?
Acho que a pele nunca deixa de trabalhar
como contorno do corpo,
como maquiagem dos órgãos
ou como talude do que por dentro escorre.
Também acho que essa pele maior que nós
vela os sonos e as insônias,
porque tem essa coisa
de guarda-noturno
e cigarro na esquina.
Mas a nossa pele tem lá uma cor
e uma história
e por isso não pode entrar em certos lugares.
Acho que a nossa pele
é parente das raízes,
dos polvos
e dos pelos de uma capivara.
Inclusive acho que a nossa pele conta mentiras
como a de que envelhecemos
a partir do veludo que ela consome,
quando na verdade
a velhice vem de baixo
como as joias
e o petróleo.
A nossa pele não nos dá despesa
e no entanto a declaramos ontem
como dependente no imposto de renda.
A nossa pele masca chicletes
mesmo sem ter um só dente.
Ela diz que abraça músculos e ossos
e que deseja as unhas de uma mulher.
É uma pele que sonha com roupas novas
(uma capa de chuva, por exemplo,
um traje de mergulho, por exemplo)
e depois que se levanta e quando toma banho
pensa muito sobre as praias onde já esteve
e os tantos reencontros,
assim que passar a pandemia.
A nossa pele não acredita nessa coisa
de trocar de pele.
Áudio do autor:https://drive.google.com/file/d/1plMchePt0VdbnSFPrS5OjBsB-N-BmT10/view?usp=sharing