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a sombra escrita da imagem

49. Nem mesmo as janelas sozinham/ Altair Martins

Foto Louis Scur Carrard

1

Nem mesmo as janelas

amadurecem sozinhas.

As janelas alçapam os gestos

e os rostos (de dentro e de fora)

sem distingui-los.

Na mesa da manhã

as cascas do pão

lecionam até mais tarde

sobre a transmutação do que foi

trigo e será carne.

No através,

as nuvens de hoje conversam

com as verrugas das mãos,

e as árvores

e o homem de louça da estante

já trocaram de lugar

e se confortam com a nova sombra.

E até o gato cor de terra,

que sobe à mesa

lambe o sol das patas

de outro gato.


2

Nem mesmo as janelas

padecem sozinhas.

No que vestem de marco

e investem de folha,

ajuízam a paz

da enfermeira que grita

e do professor que dará vexame.

Parece estar sozinho

e não mais

o vizinho quando sacode

o automóvel,

que adormeceu de bruços.

Pode estar sozinho

e não mais

o limão,

se imita um seio.

Porque as janelas desprivatizam

as portas e as torres e as caixas-d’água,

ignorando os valores de mercado.

As janelas aquariam

o que não respira

e o que também respira.


3

Nem mesmo as janelas

envelhecem sozinhas.

Pássaros afluem

de canto e fio

e pousam sobre as próprias asas.

Também as casas e os escritórios

deságuam e evaporam

no Pacífico da superfície.

Nada na janela termina

em leite que talha.

Não sonega ou garimpa

(uma janela)

o que inevitável não escolhe,

recolhe e devolve.

Na foz dos sentidos

o que da janela é corpo e pele

se esconde-esconde.

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