a sombra escrita da imagem
Atualizado: 4 de jun. de 2021
52. Vento redondo sob a cortina do quarto
Texto Altair Martins
Foto Leonardo Sessegolo
Seria preciso esquecer os que não respiram
agora
e resguardar o tom de voz que chega
quando o dia engana aberto e claro
nesta carne que espia por entre as nossas roupas
e é por isso que falta um rosto
aos que esfriam os telhados
e vendem cerveja antes do jogo
porque não somos senão
este teatro de casa própria
com seu vento redondo
sob a cortina do quarto
Seria preciso concordar com a gasolina
agora
e com o merecimento dos que merecem
seria preciso que alguém nos convencesse
da inutilidade dos insetos
enquanto dentro do fogão
trabalha o gás e fora dele a boca
contra a fome
e pelos canos e fios corre o conforto
e é por isso que confiamos
na beleza redonda deste vento
sob a cortina do quarto
Seria preciso assassinar os bairros feios
agora
e repintar de riso e tênis brancos
os cartões-postais
como seria preciso um guarda em cada esquina
para acreditarmos (mas acreditarmos mesmo)
que só é pessoa quem se veste
e come como pessoa
isso quando nossa cabeça
é só a cabeça que tem razão
e é pra alívio dela que este vento se redonda
sob a cortina do quarto
Seria preciso fincar o corpo neste telefone
autossuficiente agora
e evitar o que se soma e o que se debita
de uma cebola que nasceu antes da casca
somos o presente e compramos o que escolhemos
(embora da cesta que uma firma remota escolheu
para o livre-arbítrio de quem escolhe)
porque no fundo não há mesmo mundo
senão a nossa foto e o comentário de quem nos segue
pois que somos como aquele vento
e seu instante redondo
sob a cortina do quarto