a sombra escrita da imagem
43. MOTIVOS DE FUMAÇA E ASFALTO
ALTAIR MARTINS
E ela perguntava: seremos estrangeiros
depois da chuva e do que boia nas enchentes?
e de onde eu a vi partindo
a autoestrada subia
com aquelas coisas dela numa caixa de papelão
levando o rosto que pela primeira vez
desfiava o meu
e sei que pra ela
dirigindo um carro que não olhava pra trás
o destino se vestia melhor do que fui
e aquela faixa negra estendida como um corpo
ali na frente era mesmo algo apenas digno do pó
E ela perguntava: o que ganhamos
com a fidelidade das sombras?
e no instante de suor
que era uma sede minha
sufocavam nas minhas mãos
os automóveis que a acompanhavam
e os tantos personagens de um trânsito de rodovia
naquele cortejo que era despedida e nuvem
ou talvez uma comida que sobra na geladeira
E ela perguntava: não é verdade que o chão
segue conosco subterrâneo e em todas as viagens?
e eu sabia que aquela estrada ia me perseguir
além dos pedágios e além das autoridades
e das fiscalizações do Estado
e das paradas para água e gasolina
e além dos amores de verão
e era assim que a serventia do meu corpo
acabaria se restringindo a essas coisas
que agora recorto e guardo num envelope
E ela perguntava: será que a boca
entende minimamente a língua que fala?
e quando os motivos da fumaça
e do asfalto já eram outros
me perguntei qual estrada era aquela
que detinha o peixe do prato,
os pássaros da esquina,
o verde no vestido sempre verde,
um rock clássico
e as minhas contas atrasadas
na primeira gaveta da escrivaninha
E ela perguntava assim: parece, não parece,
que a casa acaba quando as moscas
descobrem nosso endereço?