a sombra escrita da imagem
42. Confissão para antecipar a noite
ALTAIR MARTINS

O que respirei ainda pesa sobre os ombros
de hoje.
Pesam as mãos que não quero encarar
pois recrimino.
Pesa a rua que espera que eu passe
neste fim de tarde em que o concreto
se recolhe atrás das tintas
e não por timidez.
Pesados estes olhos
que não olham pra si mesmos
mas julgam quem fui.
O que respirei (agora reconheço)
foi antes susto e vacilação
depois de um beijo imerecido aos 14 ou 15 anos
na moça que hoje é médica
durante aquela reunião dançante
nos fundos de uma loja de autopeças
nesta rua que a tarde não cala.
E o que respirei pesou tanto
que eu não soube o que dizer
quando podia ter dito que o inverno
não era páreo para aquelas mãos.
Mas naquele rosto eu vi uma menina
aflita com ter escolhido alguém sem graça
e entendi quando ela fugiu.
Confesso ao fim da tarde
o fracasso do meu primeiro amor
sob a última luz que o dia desperdiça.
Encaro o julgamento do eco
e das coisas que caem
porque não há ninguém nas calçadas
ou janelas. Todos são
personagens que eu manejo atrás dos olhos
e por isso posso mentir
que peguei as mãos da futura médica
e soprei um gesto tão precioso
que ela levou consigo.
Ocorre que sei das nuvens no que vejo:
elas estão duras porque não podem dar
ao rosto que tive a fala que hoje tenho
mas no fundo eu sei
que as nuvens são tãos leves
que eu nunca poderia apertá-las contra mim
sem o risco de intervir
na sede desta tarde que morre.
Eu vou soprar a noite
como quem seca uma ferida.
ÁUDIO DO AUTOR:
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