a sombra escrita da imagem
40. PENSAR PARADIGMAS
Altair Martins
Descobri um buraco na minha voz,
no quarto escuro do ano
onde deito tarde
e acordo sem arrumar a cama.
Minha voz é como as outras:
às vezes fala, às vezes cala.
(Quando digo buraco
estou fazendo uma confissão).
Encontrei outro buraco na minha mão
onde os livros se ajoelham
e as flores amarelas mandam cheiro.
Nesse buraco me rezo.
Minha mão abre e fecha sobre as outras,
escreve sobre o escrito e também sente frio.
(Quando digo buraco
quero dizer um aceno).
Há mais um buraco no meu cabelo
com um dedo que aponta
para os lugares-comuns, por exemplo:
um cartaz de procura-se um cão.
Meu cabelo é que nem cabelos:
cresce enquanto durmo.
(Digo buraco, ou seja,
digo mesmo um estilo).
Encontrei um buraco na ponta do pé,
uma casa destelhada que não me subtrai
(se multiplica) no passo
e canta na indigência de abrir a boca.
Minha ponta de pé sabe levar
e dar pontapé.
(Assim que buraco pode ser
um passo à frente, um passo atrás).
Já o meu contorno é todo buraco:
abraço que dança com a minha espessura,
como uma cerca que cerca e não aperta
(através dele me viro do avesso).
Meu contorno só é meu
se vislumbro a sombra de alguém.
(No lugar de buraco
leia-se epiderme).
Há um buraco, enfim, no meu banho,
oculto na água, embaixo das unhas,
mas com a força de uma agência bancária.
O mais frágil é sempre o que se veste.
Meu banho imagina
os banhos dos outros.
(Quando digo buraco
estou falando de amor).
Áudio:https://drive.google.com/file/d/1zAMK--hrHpfhM1FCDxU6FMTrR3urs2vT/view?usp=sharing