a sombra escrita da imagem
38. A rua escreve antes de dormir
Altair Martins
A rua escreveu
que o bairro foi se recolher cedo
naquele verão brutamontes
que bebeu todas ao meio-dia
e continuou bebendo com os mosquitos
e os sapos.
A rua anotou
que o sono seria uma nova bênção
mesmo com a noite abafada.
Ela falou sobre a espera paciente
pela umidade do rio
e o cheiro bom de peixe
e que só então escreveu
sobre cada automóvel calado
na leveza de ser esquecido.
Falou da peneira do ar,
dos suspiros das casas
e de um gato
com olhos maiores que ele.
Escreveu sobre o plantão dos postes
e dos fios,
da tinta desgastada no limite das coisas
que se atritam, se mordem, se amparam,
da dor incessante das lâmpadas elétricas
e do medo (que ainda temos)
de temporal com granizo.
Mas a rua escreveu também sobre si.
Que o dia lhe pisou tão pesado
quanto um feijão que se come rápido.
Ela disse que o calor estriou sua pele
por onde andam os bichos pequenos
e também os jornalistas, os diretores de escola
e os fotógrafos.
Escreveu sobre as próprias feridas
e a convicção de que a terra se cura.
Mas repetiu que lhe incomodava
o suor nos cabelos
e que só o que queria
era deitar-se depois de um banho.
Insone pelo suor das árvores,
a rua não quis café
quando não teve mais o que escrever.
Então fechou apenas um olho
e amanheceu sobre os próprios ombros
— como alguém
que dormiu de pé.
Áudio do autor:
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