a sombra escrita da imagem
24. DISCUTIR MEU NOME

Um dia eu poderia encontrar meu nome
numa folha ressecada
por algum outono sem data.
Talvez eu pudesse ser belo e incompleto
como um livro à espera de uma criança.
Um dia eu poderia respirar no frio
de um inverno bonito
como o sorvete seco que guardava os meus brinquedos.
Eu poderia ser feliz como a fotografia
de um cavalo que ao meio-dia até o sol invejou.
Um dia eu poderia ser a grama
de cabelo recém-cortado
e ter uma porção de insetos invisíveis por família.
Eu poderia ser mais rico que o mais rico
e não saber dessa fortuna
nem viver de aluguel.
(Nesse dia eu trocaria de nome
e faria como os índios
que os livros do Brasil exaltavam por mea culpa:
eu conquistaria o modo como me chamam).
Um dia eu seria negro.
No outro mulher.
No outro bicho.
E no outro água.
Eu saberia enfim na medula o que é a violência
e a tal normalidade.
Eu saberia sentir o que fede
cada cédula de cada moeda que este país já teve.
Eu queria ter mais vergonha do que tenho
já que todos os escravos também foram meus.
E eu queria, sim, ser a folha que seca
e se envergonha de um orgulho qualquer.
Um dia eu deveria ouvir no meu grito
o que gritam os outros (os mais desafinados).
Nesse dia,
eu trocaria o meu nome
por uma coisa sem som,
feito uma fruta que apodrece.
Confira o áudio: https://drive.google.com/file/d/1SLY2i1thcC9Zu4VgODk8ej9y3WTUV0o0/view?usp=sharing