A cidade dá de ombros, de Altair Martins
Atualizado: 11 de jul. de 2020
A cidade dá de ombros
De qualquer ângulo que a cidade seja surpreendida,
entre edifícios e casas nunca mostra os olhos.
A cidade protege os homens fortes dos pássaros e das flores,
oferecendo miniaturas: automóveis, bancos, bares.
Com isso esconde os gestos que não existem:
pessoas que apagam os nomes das ruas com os dedos
e assinam
quando o dia se faz demasiado seco.
A cidade que sonha com neve no natal.
Se espiada de um barco, a cidade tem a calma
de um mamão partido ao meio.
É toda aspirina, porque teima que teima
que o mando e o desmando
são apenas árvores em fila.
Ela toda é uma só cidade cantando parabéns
quando há rumores de armas de fogo
antes que a noite chegue.
A cidade que é sempre vista na igreja.
Se descoberta pela estrada, a cidade não tem mãos
e entretanto esconde os homens grandes que,
todos os dias, se alastram para os lados
e ocupam os cômodos
que os cupins deixaram ocos.
Também com braços curtos
a cidade permite que algumas crianças sejam definitivas
como um retrato três por quatro.
A cidade que joga videogame.
Se descoberta do morro, a cidade descansa
sem genitália ou zonas periféricas.
É uma cidade tão inocente que sem pesadelos.
Pra dormir escuta a história
de era uma vez pessoas que riam
e outras que não tinham pernas
e elas todas calçavam o mesmo sapato invisível.
Mas é mentira da cidade:
os telhados não são um só.
A cidade que é filha de coronel.